Decisão do STF pode mudar cenário da judicialização no Brasil

O Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou este mês decisão com repercussão geral sobre caso de concessão de medicamento por via judicial. Foram quase dez anos de debates e encaminhamentos para fundamentação do julgamento. Gestores celebram a possibilidade de impacto positivo contra excessos cometidos em ações que judicializam políticas de saúde no país. Por outro lado, pacientes receiam que interpretações sobre a normatização criem obstáculos para um acesso que costuma ser complicado. Em meio às repercussões, organizações da sociedade civil esperam que normas sirvam de partida para movimento governamental de atendimento às demandas deste grupo de pacientes.

A decisão, que ocorreu por ampla maioria: 9 votos a 1 em Plenário, determina proibição para o fornecimento de remédios sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No entanto, os ministros estabeleceram regras para casos excepcionais, nos quais a Justiça poderá ordenar o fornecimento do medicamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), desde que sejam observadas algumas condicionantes. O julgamento decorreu da ação de uma paciente de Minas Gerais que buscava reverter decisão da Justiça estadual segundo a qual o Poder Público, em nenhuma hipótese, teria a obrigação de fornecer gratuitamente um medicamento sem registro na Anvisa.

Prevaleceu o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso no caso. Ele confirmou a proibição de o Poder Público fornecer medicamentos sem registro pela Anvisa, mas ressalvou que, em casos excepcionais, como os das doenças raras e ultrarraras, por exemplo, o cidadão pode pleitear na Justiça que o SUS pague pelo tratamento com tais remédios. A decisão final serve para todos os casos judiciais do tipo, sob os efeitos da chamada repercussão geral.

Condições

Para que um juiz possa determinar o fornecimento do remédio sem registro sanitário será preciso que uma série de condicionantes seja atendida: que a Anvisa estoure o prazo previsto na Lei 13.411/2016 para processar o pedido do registro; que o medicamento já possua registro em reputadas agências reguladoras no exterior e que não exista substituto terapêutico no Brasil.

Além de tais condicionantes, ficou definido que o paciente em busca de remédios sem registro sanitário não poderá processar municípios e Estados, mas somente a União, uma vez que a esfera federal é a única responsável pelo processo de registro de medicamentos. No caso ainda mais excepcional das doenças raras e ultrarraras, o Supremo definiu que o juiz pode determinar o fornecimento de medicamento sem registro sanitário mesmo nos casos em que sequer haja pedido de registro do remédio na Anvisa.

Em todos os casos, devem ser condições para a abertura da ação que o paciente comprove não ter dinheiro para custear o tratamento por conta própria (hipossuficiência econômica) e que haja laudo médico comprovando ser aquela a única alternativa eficaz de medicação. Por fim, pela tese aprovada, fica reiterada a proibição, já prevista pelo Supremo em julgamentos anteriores, de que a Justiça determine o fornecimento pelo SUS de medicamentos experimentais, isto é, aqueles que ainda se encontram em fase de testes.

O olhar do Gestor

O presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass), Alberto Beltrame, afirmou, em entrevista exclusiva para IATS News, considerar que a decisão do  é “correta e equilibrada”. Beltrame acredita que o resultado do julgamento fortalece pontos essenciais da relação entre a gestão da saúde pública e a sociedade civil.

“Esta decisão reforça a garantia à segurança do paciente, quando veda a possibilidade de acesso a medicamento experimental. Reforça a relevância do papel da Anvisa como instância adequada para definições sobre segurança e efetividade de tecnologias em saúde e, em minha visão, cria uma linha de entendimento jurídico mais próxima do interesse da saúde pública”, argumenta.

O presidente do Conass também sustenta que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) deverá conter eventuais exageros e conflitos de interesses provenientes do que descreve como “pressão da indústria farmacêutica”. “Muitas vezes, em nome do sucesso comercial, um fabricante cria falsas expectativas sobre medicamentos sem que haja a devida comprovação científica daquilo que é prometido”, indica.

Beltrame, por fim, revela sua previsão de que, em médio e longo prazos, a decisão do STF resultará em redução de ações que judicializam políticas de saúde pública. “O papel da gestão é ampliar ao máximo a acesso da população aos serviços de saúde, com o compromisso de incluir no sistema aquilo que tem comprovação em evidências científicas. Não se trata de impor barreiras diante da esperança daqueles indivíduos que sofrem por uma doença, mas de trabalhar com a realidade dos recursos disponíveis e a responsabilidade com a vida e a segurança dos pacientes”, concluiu.

O olhar do Paciente

Presidente da Associação Nacional dos Pacientes com Doença de Gaucher e Outras Doenças Raras, Pedro Carlos Stelian aponta que o desfecho de julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) é uma oportunidade para que a sociedade brasileira rediscuta a metodologia de elaboração do financiamento dos serviços de saúde. “O orçamento da saúde não pode ser algo hermeticamente fechado. Esta visão é que obriga as pessoas a buscar acesso através da Justiça. Esperamos que esta decisão não venha dificultar mais ainda a vida dessas pessoas”, alerta.

Stelian atua na defesa dos direitos de pacientes por conta da doença que acomete sua esposa. São 27 anos de circulação por tribunais em busca de acesso a medicamentos para atenuar os males decorrentes da Doença de Gaucher, que exige tratamento de reposição enzimática para conceder condições básicas de qualidade de vida ao paciente. Para ele, o poder público precisa ter em seu planejamento a previsão de recursos para o atendimento e estes grupos de doenças, evitando gastos desproporcionais através da compra organizada dos produtos.

A portadora de mucopolissacaridose do tipo 1, Deise Zanin, é ainda mais enfática. Para ela, o olhar centrado apenas nas questões econômicas é prejudicial para a própria sociedade. “Se não houver estratégias para melhorar a qualidade de vida dos pacientes, haverá ainda mais perdas, pois são pessoas que deixam de trabalhar e contribuir, além de, muitas vezes, necessitarem do suporte de seus familiares, que também terão restrições produtivas”, analisa.

Deise atua em uma entidade que auxilia, em Porto Alegre, pessoas com doenças raras a encontrar acesso aos serviços de saúde. Segundo ele, cerca de 60 pacientes com seus familiares, oriundos dos três Estados do Sul do Brasil, são amparados com orientações sobre direitos e encaminhados à Defensoria Pública para pleitear ingresso em serviços de saúde.

A perspectiva do SUS

Em março deste ano, o Ministério da Saúde anunciou que uma nova modalidade de compra poderá adotada pelo Sistema Único de Saúde: acordo de compartilhamento de risco. Diferentemente dos acordos tradicionais, em que o Estado, pagador, arca integralmente com os riscos de uma incorporação (principalmente nos casos de incertezas em relação aos benefícios da tecnologia no mundo real), e o produtor, a indústria, somente fornece a tecnologia, no compartilhamento de risco há uma celebração de contrato entre o Estado e a Indústria. Nesse modelo, ambos envolvidos concordam que a definição do preço da tecnologia se dará no futuro, conforme os resultados apresentados a partir dos dados de mundo real, referentes ao uso da tecnologia pela população.

“Para isso, o pagamento da tecnologia está ligado à apresentação de evidências dos efeitos reais, ou seja, em como a tecnologia ao ser utilizada impacta na saúde e na qualidade de vida do paciente. Nessa modalidade, portanto, não se considera apenas os resultados de estudos controlados utilizados na ATS, mas os resultados produzidos com o uso da tecnologia no dia a dia dos pacientes (estudos observacionais). Assim, o Estado e a Indústria compartilham a responsabilidade pelas incertezas em relação aos benefícios com o uso da tecnologia”, explica a nota do Ministério da Saúde. Porém, o texto não define o prazo quando a estratégia será incorporada.

Texto e edição: Luiz Sérgio Dibe

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