Agendas biomédicas: interfaces da produção de conhecimento em saúde no século XXI

Resenha do artigo:
Costa, Maria Conceição da, & Silva, Renan Gonçalves Leonel da. (2019). A dinâmica do conhecimento biomédico e em saúde: uma interpretação sociológica. Sociologias, 21(50), 18-47.

A investigação dos fatores culturais presentes na atividade de produção de conhecimento em saúde tem sido objeto de pesquisa recorrente nas Ciências Sociais. De certa maneira, o interesse pelo tema colaborou com o próprio desenvolvimento da disciplina ao longo do século XX. Questões referentes à composição intelectual e tecnológica das instituições de Saúde, assim como as estratégias de promoção de suas agendas de pesquisa, chamam a atenção de pesquisadores interessados em estudar a dinâmica social do conhecimento.

O número especial proposto pela Revista Sociologias (UFGRS) “Agendas biomédicas: interfaces da produção de conhecimento em Saúde no século XXI” publica artigos inéditos sobre pesquisas desenvolvidas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros acerca do tema. A seguir, disponibilizamos uma breve apresentação dos textos publicados, assim como apresentado pelo autor no artigo que compõe o dossiê intitulado “A Dinâmica do Conhecimento Biomédico: uma interpretação sociológica”.

No que diz respeito aos trabalhos publicados, trata-se de um excelente (e atual) material de pesquisa sociológica, que resgata críticas fundamentais sobre o processo de construção social do conhecimento biomédico contemporâneo – seja decorrente das práticas científicas, seja do aprendizado gerado na produção de políticas e inovações tecnológicas aplicadas à saúde humana. Apresentando distintas abordagens teóricas e metodológicas, os textos fortalecem o caráter interdisciplinar desse campo, que é uma característica necessária para que se dê conta da complexidade das transformações (e também das permanências) do conhecimento biomédico nas últimas décadas.

O artigo Embodied values: post-pharmaceutical health and the accumulation of surplus vitality in regenerative stem cell medicine, de autoria de Christian Haddad (Austrian Institute of International Affairs), é um exemplo interessante de como as novas tecnologias têm alterado as concepções de vida e saúde nas sociedades capitalistas contemporâneas. A argumentação sustentada é a de que a maior oferta de terapias (Haddad usa como estudo de caso aquelas baseadas em células-tronco) tem permitido a configuração do que o autor chama de “saúde pós-farmacêutica”. Esse novo tipo de condição humana tem como fenômeno central a possibilidade de “acumulação” de “vitalidade excedente”, que se reproduz num ambiente marcado pela dinâmica dos negócios da bioeconomia, em que se promove incessantemente, na cultura capitalista, a busca por novas tecnologias em saúde (mais modernas, mais controversas e também mais caras). Esse sistema de relações, construído como fenômeno particular ao século XXI, tem permitido a emergência de novas formas de subjetividade na relação com a saúde, o corpo, a ciência e a tecnologia.

Seguindo uma abordagem crítica sobre os fatores sociais que interferem na produção do conhecimento científico, agora aplicada especificamente à prática científica que ocorre nos laboratórios, o artigo Periferia pensada em termos de falta: uma análise do campo da genética humana e médica, de Mariana Toledo Ferreira (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás) fornece uma excelente discussão sobre as assimetrias presentes nas condições materiais e intelectuais nas ciências biomédicas no Brasil. O texto sustenta a ideia de que os cientistas, ao articularem discursivamente uma caracterização da pesquisa biomédica no contexto local brasileiro, descrevem essa prática como mediada em termos de falta, em que se dá ampla atenção para a escassez das condições materiais para se produzir ciência no país. O trabalho avança mostrando que essa narrativa se constrói como parte importante do imaginário do cientista nas áreas de genética humana e médica, que se localiza como pertencente a uma condição de periferia do sistema científico de excelência. Em grande medida, essa comparação decorre do contato dos pesquisadores com uma realidade do exterior, e a autora demonstra que isso pode ser entendido como um reflexo das relações de dependência cognitiva, nos moldes propostos pelas Teorias da Dependência latino-americanas na segunda metade do século XX. O trabalho representa, portanto, um diálogo importante e raramente encontrado na literatura dos ESCT, em que se utilizam “nossas teorias” para explicar um fenômeno local marcado por um constante reforço das relações centro-periferia na ciência, que é uma prática intrínseca à própria dinâmica do conhecimento científico.

Propondo uma discussão similar, mas focada no âmbito das iniciativas de governança da pesquisa biomédica e do desenvolvimento tecnológico em saúde na América Latina, o artigo Shaping stem cell therapies in Argentina. Regulation, risk management and innovation policies, de Gabriela Bortz (Universidad Nacional de Quilmes), Achim Rosemann (University of Exeter) e Frederico Vasen (Universidad de Buenos Aires), apresenta um estudo de caso que demarca com clareza os desafios presentes na construção de um sistema de regulação para terapias baseadas em células tronco na Argentina. O artigo fornece ao leitor uma perspectiva crítica das políticas públicas, seja pela defesa de interesses em torno da promoção comercial de novas tecnologias, seja pela escassez de instrumentos de participação democrática presentes nessa agenda. Esse processo é visto como um desafio para a regulação de temas que envolvem conhecimento especializado em alta tecnologia na América Latina, já que há um embate significativo entre governos, especialistas e agências reguladoras, mediado por poucos elementos técnicos. O texto serve como um excelente estudo de caso para entender como se dá a construção de políticas nacionais de regulação de novas tecnologias em saúde, em um contexto de compreensão limitada dos riscos que envolvem a promoção de novas terapias.

Uma abordagem complementar à discussão apresentada no dossiê é desenvolvida no texto de Sakari Tamminen (University of Helsinki) e Niki Vermeulen (University of Edinburgh), intitulado “Bio-objects: new conjugations of the living”. O artigo é uma incursão nos aspectos epistemológicos da investigação da “vida”, esta entendida como uma entidade complexa e fragmentada pelas novas formas de existir da vida biológica. Nesse sentido, é uma contribuição fundamental que se insere na corrente dos estudos pós-genômicos – campo emergente que reúne concepções de mundo, ideias, discursos e formas de compreensão da vida num empreendimento teórico interdisciplinar. Essa forma híbrida de vida altera profundamente o sistema de relações sociais conforme estávamos acostumados a entender no passado, e introduz novas questões concernentes à governança da vida e da ética. Os autores desse último artigo do dossiê propõem que o conceito de “bio-objetos” possa ser útil para mapear e analisar as esferas empíricas em que novas conjugações da vida estão sendo rearticuladas.

Elaborado por:
Renan Gonçalves Leonel da Silva
Data da Resenha:
28/03/2020
Eixo Temático:
Serviços de Saúde e Políticas Públicas
Eixo metodológico:
Plataforma Metodológica de Apoio à Avaliação e Monitoramento de Tecnologias em Saúde

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