Entrevista: magistrado autor de livro fala sobre judicialização

Sadraque Oliveira Rios, autor do livro “Decisões liminares na judicialização do direito à saúde pública”, é entrevistado pelo IATS

Nesta edição 108, a primeira de 2020, IATS News traz entrevista sobre o tema da judicialização na saúde do Brasil, que permanece representando um dos principais desafios para a administração pública e o direito de acesso pelos brasileiros. O entrevistado é o Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Sadraque Oliveira Rios, autor do livro “Decisões liminares na judicialização do direito à saúde pública”.

Sadraque é Doutor em Administração Pública e Governança pela Universidade Federal da Bahia. Membro do Comitê Executivo Estadual baiano do Fórum Nacional de Saúde do CNJ. Membro do Comitê Deliberativo da Câmara de Conciliação de Saúde – BA. Membro da Comissão Gestora de Atenção Integral à Saúde do Poder Judiciário do Estado da Bahia. Membro do Comitê Gestor Local de Gestão de Pessoas do Tribunal de Justiça da Bahia. Juiz cooperador do NAT-JUS do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Coordenador-geral da Escola de Magistrados da Bahia. Editor da Revista Erga Omnes, da Escola de Magistrados da Bahia. Formador, conteudista e tutor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM). Especialista em Direito Público.

Em seu livro, que inspirou a entrevista, Sadraque analisou o fenômeno da judicialização do direito à saúde pública, concentrando-se no município de Salvador, no período entre 2014 e 2016. O autor busca compreender a dinâmica das instituições atuantes no cenário a partir do qual o juiz constrói suas decisões. Para dar robustez à pesquisa, realizou entrevista com protagonistas do fenômeno e examinou mais de 600 processos judiciais, detalhando múltiplas variáveis. Os resultados indicam a necessidade de se pensar a saúde pública por meio de outros paradigmas, compreendendo a sua pluralidade e buscando soluções transdisciplinares para os conflitos.

IATS News – Como foi a ideia de escrever sobre judicialização da saúde?

SADRAQUE – A ideia de escrever este livro surgiu a partir dos estudos realizados em grau de doutorado na área de Administração Pública e Governança, pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. A principal fonte de influência foi a participação deste autor, desde 2016, no Comitê Executivo Estadual do Fórum Nacional da Saúde, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), bem como, na condição de magistrado, a participação no projeto interinstitucional de implantação e, atualmente, integrante do seu Comitê Deliberativo, da Câmara de Conciliação de Saúde na Bahia – órgão extrajudicial de solução de demandas envolvendo saúde pública. Todas essas experiências, além do cotidiano profissional como magistrado, julgando processos envolvendo saúde pública, despertaram a necessidade de aprofundamento de estudos sobre a judicialização da saúde pública na esfera municipal e os principais aspectos neoinstitucionais que se envolvem na formação do convencimento do magistrado ao julgar. Finalmente, a participação no projeto de pesquisa “Estratégias de regulação e barreiras de acesso aos leitos de UTI: estudo na Macrorregião Leste do Estado da Bahia”, realizado na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia, sob a coordenação da Professora Dra. Vera Lúcia Peixoto Santos Mendes, também ofereceu respaldo empírico sobre a judicialização da saúde.

IATS News – Que tipo de histórias o senhor observou em sua trajetória profissional?

SADRAQUE – Os dilemas envolvendo a tutela do direito à saúde em processos judiciais apresentam-se como uma das formas de litígio mais pulsantes e desafiadoras aos profissionais do Direito, especialmente os magistrados. Afinal, exige-se a busca pela solução dos conflitos com o menor comprometimento [pessoal do julgador] emocional, humanitário, religioso e moral para essas questões que, invariavelmente, expõem um rosto, uma identidade e, não raro, a presença física de alguém em sofrimento por algum quadro de doença.

IATS News – O senhor analisou mais de 600 processos. Quais as principais características encontradas nestas demandas? O que lhe chamou mais a atenção?

SADRAQUE – Inicialmente, destaco que o foco da pesquisa foi entender o fenômeno da judicialização no âmbito municipal, haja vista a importância da atenção primária; o financiamento público fragmentário e insuficiente; as fragilidades locais de planejamento e execução de políticas; o menor tamanho do orçamento em saúde, em número absoluto, para Municípios do que para Estados ou União, que possuem maior capacidade financeira e de gestão; e, em contrapartida, a ampla carga de atuação dos Municípios no SUS, conforme se depreende do rol de atribuições estipuladas na Lei Federal n. 8.080/90.

O perfil da judicialização da saúde contra o Município de Salvador entre 2014 e 2016 mostrou um total de 654 processos na justiça estadual, com 739 objetos consistentes em prestações variadas em saúde (natureza assistencial). Todos os pedidos (100%) envolveram prestações existentes ou disponíveis no próprio Município de Salvador para o Autor da ação (local do tratamento ou aquisição do medicamento).

Os objetos demandados foram agrupados em tema da seguinte maneira: regulação (consultas, tratamentos médicos, exames, internações etc.), correspondendo a 69,1%; medicamentos, 20,8%; nutrição (fórmulas alimentares e suplementos), 9,5%; atenção psicossocial (internação compulsória), 0,1%; home care, 0,1%; vigilância sanitária (vacinas), 0,3%. Estratificando-se o resultado, nota-se que os objetos mais judicializados foram os procedimentos com finalidade diagnóstica, clínicos e cirúrgicos, dentre eles exames de ressonância magnética (13,12%), cirurgias do sistema osteomuscular (13,12%) e consultas com médicos da atenção especializada (9,34%).

Este retrato de predomínio dos objetos relativos à regulação, com primazia de 82,2% para a média e alta complexidade, especialmente considerando que Salvador tem gestão plena dos serviços básicos e gestão compartilhada dos recursos de média e alta complexidade, sugere que o arranjo federativo de compartilhamento do teto MAC (média e alta complexidade) não funcionou satisfatoriamente. As causas prováveis residem na insuficiência de aporte de recurso federal, na insuficiência do percentual destinado à gestão municipal e, inclusive, na maneira como foram geridos/executados esses recursos.

No que concerne às demais variáveis, a totalidade da amostra investigada não continha prestações enquadradas em “tratamento experimental”, posto que 99,7% dos objetos já apresentavam o registro sanitário na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Complementarmente, apenas 01 objeto foi apontado como não possuindo evidência científica favorável para seu uso, a saber, a internação compulsória, sendo que, para 99,6% dos objetos analisados, foi presumido haver evidência científica favorável por causa do prévio registro sanitário.

Finalmente, 81,5% dos objetos demandados estavam incorporados ao SUS, mediante ato formal ou não. Neste particular, registra-se que Salvador dispensava alguns medicamentos mediante protocolos internos, os quais ainda não tinham sido incorporados por ato do Ministério da Saúde. Este percentual, apesar de elevado, mostra uma discrepância perante a atuação da ANVISA, justificável, dentre outros motivos, pela diferença de critérios utilizados para a incorporação ao SUS, não aplicáveis à obtenção do registro sanitário, a exemplo da análise de custo-efetividade, necessária para um sistema que, em sua matriz, busca atender ao princípio da cobertura universal.

Em relação ao gasto desembolsado por Salvador para o cumprimento das decisões liminares, apurou-se, para os temas com custos mensais (medicamentos, nutrição e atenção domiciliar), o valor médio mensal foi de R$1.895,10, com um mínimo de R$0,00 e máximo de R$61.490,00, no período; enquanto que, para o tema “regulação” (custos pontuais), a média foi de R$12.067,70, com um mínimo de R$4,13 e máximo de R$305.858,16. Estes valores em face do orçamento municipal executado em saúde sinalizam um decréscimo de 0,25% a 0,12% no intervalo de 2014 a 2016.

De fato, em 2014, o Município de Salvador teve uma despesa com judicialização da saúde de R$2.709.161,15, correspondente a 0,25% de sua despesa executada com saúde no mesmo ano; em 2015, essa mesma despesa foi de R$1.635.894,24, equivalente a 0,14% da despesa municipal executada em saúde no mesmo ano; por fim, em 2016, a despesa com judicialização da saúde de R$1.586.091,73, correspondendo a 0,12% de sua despesa executada com saúde no mesmo ano. Portanto, houve um aumento da despesa orçamentária geral, efetivamente executada para a Política de Saúde soteropolitana, mas, por outro lado, ocorreu uma diminuição em termos absolutos e relativos dos custos com objetos judicializados.

No que tange aos documentos que instruíram o pedido, 474 processos examinados (72,6%) possuíam, ao menos, um documento médico (relatório, laudo ou prescrição) emitido por unidade hospitalar, ambulatorial ou serviço médico integrante do SUS. Entretanto, na amostra examinada, apenas em 23,7% dos casos (155 do total de 654 processos), os magistrados suscitaram análise do NAT-JUS (órgão de assessoramento técnico aos magistrados). Constatou-se, por conseguinte, que, embora haja forte atuação normativa do CNJ para tratar sistematicamente a matéria, a maioria das decisões judiciais pesquisadas não toma como referência os normativos do CNJ sobre o NAT-JUS.

Em relação ao teor da decisão liminar, do total de processos em que houve decisão, em 559 deles (87,1%), o juiz concedeu, ainda que em parte, o pedido formulado pelo Autor em tutela de urgência. Na maioria dos casos, não houve pedido de informações ao Réu antes de decidir. Na perspectiva da abordagem judiciária neoinstitucional, este elevado número de concessão de liminares, ao lado dos resultados obtidos no quantitativo de processos ajuizados entre 2014 e 2016 (ainda que flutuantes), demonstra que o Judiciário tem representado um curso de ação para a busca de tutela de direitos. As restrições que impõe e as responsabilidades que atribui (ou direitos que reconhece e garante), a rigor das decisões que profere em caráter de definitividade na solução de crises jurídicas, são as marcas distintivas dessa instituição.

O resultado para a variável “inquestionabilidade do ato médico prescritor” revelou que, em 448 processos (75,42%), foi proferida decisão liminar em que a probabilidade do direito do Autor, no que tange aos fatos narrados, foi acolhida com base exclusivamente nos documentos médicos carreados pelo Demandante. Isto significa que, em apenas 146 processos (24,58%), houve decisão em que o magistrado revolveu a matéria fática, considerando opiniões técnicas de outras fontes, a exemplo do NAT-JUS (tanto para o processo em referência como em análise pretéritas em casos semelhantes). Por sua vez, em 87,05% dos processos, o juiz entendeu que os documentos médicos apresentados, à vista ou não de manifestação do NAT-JUS, delineavam um quadro de urgência ou emergência caracterizadora de um dos requisitos da tutela de urgência. Desta forma, vê-se que a inquestionabilidade do ato médico prescritor pode ensejar o atendimento automático dos requisitos legais para a concessão da liminar, se, por referido documento médico, também for afirmado que o caso é de urgência/emergência.

IATS News – Em sua visão, o que a judicialização representa para o paciente que ingressa na Justiça e o que representa para o Estado? Quais valores estão envolvidos neste julgamento?

SADRAQUE – Esta pergunta salienta uma clássica dicotomia das lides judiciárias no tema da saúde. Na verdade, traduz os debates e estudos predominantes sobre a judicialização da saúde os quais têm sido focados no discurso maniqueísta, repleto de antagonismos entre argumentos estritamente jurídicos (fundamentos referenciados na tutela da dignidade humana do paciente) e argumentos precipuamente econômicos ou de gestão pública (discussões orçamentárias do Poder Público). Conquanto existam fundamentos válidos em diversas análises desse formato, o livro não pretende aderir a posições que qualificam a judicialização como problema à saúde pública ou como consequência dos problemas da saúde pública ou, inclusive, como solução a esses problemas. Este fenômeno é um fato no cenário nacional e internacional que, em vez de colher adeptos ou antagonistas, precisa ser compreendido no quadrante em que se encontra, para que possa ser conduzido em favor dos efetivos interesses da população, do bem comum.

IATS News – Como o senhor definiria a forma como ocorre a judicialização da saúde no Brasil?

SADRAQUE – Não é fácil estabelecer uma resposta, pois há uma série de contextos regionais e locais com marcantes diferenças socioeconômicas e de necessidades específicas da população, e tudo isto reflete nas características da judicialização, ou seja, no que as pessoas buscam no Judiciário. De modo geral, é possível afirmar que há um crescente número de processos judiciais na área, o que sugere fragilidade/dificuldade de acesso ao SUS e, inclusive, fragilidades assistenciais.

IATS News – Neste processo de análise de casos e produção do livro, o senhor identificou possíveis atitudes para que a judicialização não seja demasiada?

SADRAQUE – Um novo paradigma para a jurisdição em saúde pública precisa voltar-se para a morfologia plural do conflito que é apresentado ao Judiciário, buscando a interlocução entre saberes e práticas profissionais, ou, mais precisamente, a articulação sistemática entre campos disciplinares e suas respectivas instituições, para que a técnica jurídica alcance a efetividade da tutela de direitos. Essa sugestão de novo paradigma consiste na maior contribuição que esta pesquisa pode oferecer, em sentido amplo, ao tema. Seu alcance perpassa pela qualificação dos profissionais do Direito e da Saúde, nos conteúdos de Políticas Públicas e de Direito Sanitário, desde o berço de formação acadêmica, fomentando-se a interdisciplinaridade para a tutela do direito à saúde pública. Ademais, abrange o fortalecimento técnico, avaliação e consolidação dos arranjos institucionais relativos à judicialização da saúde, a exemplo do NAT-JUS.

Essa postura traz maturidade profissional para desmistificar o dogma do ato médico prescritor e inseri-lo no campo das provas a serem examinadas como todas as outras; ainda, permite não ceder às urgências estritamente morais, desprovidas de respaldo científico e jurídico. Sob o ponto de vista mais imediato, aponta-se a contribuição desta pesquisa para a necessidade de organização de banco de dados sobre a judicialização da saúde, tanto pelo Judiciário quanto pelo Executivo, assim como para a valorização de iniciativas que, por meio de técnicas autocompositivas, possam levar à solução de conflitos de natureza complexa.

IATS News – Que aconselhamento daria a cidadãos que pensam ingressar na Justiça?

SADRAQUE – É uma posição delicada sugerir ao cidadão, que está experimentando situação de doença e, certamente, de abalo emocional, deixar de fazer algo por si, buscando o melhor [suposto] amparo assistencial em saúde, por ferir lógicas orçamentárias ou esquemas administrativos abstratos em nome da coletividade. O desafio não está nas mãos do cidadão individualmente considerado, mas das instituições que protagonizam o fenômeno da judicialização (Judiciário, Advocacia, Ministério Público, Conselhos de Classe etc.) as quais devem aprimorarem suas ferramentas de solução dessas questões que são apresentadas por esses cidadãos.

IATS News – E aos seus colegas juízes, que experiência poderia compartilhar?

SADRAQUE – Além do quanto já dito anteriormente, afirmo que a decisão do juiz, por si, está sujeita a uma série de vetores relacionais entre diferentes instituições e influxos de diversas crenças, normas, recursos, histórias e dinâmicas do próprio Judiciário e de seus membros. Assim, é necessário que o magistrado identifique essa relação intrincada e busque aperfeiçoamento e assessoramento técnico para decidir questão de tutela à saúde.

IATS News – Que tipo de retorno o senhor tem obtido sobre o livro? Leitores, alunos, o que dizem?

SADRAQUE – Felizmente, os leitores têm reportado surpresa com a visão do autor a respeito do funcionamento do SUS, haja vista não ser conhecimento usual entre magistrados, assim como os dados estatísticos gerados e as hipóteses testadas a respeito das principais variáveis que influenciam a decisão do magistrado têm sido bastante comentadas pelos leitores. Agradeço a oportunidade de apresentar algumas ideias a respeito da judicialização da saúde e os frutos da pesquisa que levaram à publicação deste livro.

Saiba como acessar o LIVRO.

Edição: Luiz Sérgio Dibe

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